Filho de Assentados, reside no Assentamento Bela Vista e é professor do curso de História da FAFIDAM/UECE.
Em maio de 1996 o município de Jaguaruana, localizado na Região do Baixo Jaguaribe, Estado do Ceará, foi palco de uma das maiores manifestações de trabalhadores rurais na luta pelo direito a terra. Cerca de 200 (duzentas) famílias ocuparam na noite de 24 de maio uma grande propriedade rural, conhecida como JOBRASA – Jojoba do Brasil S.A. – grande produtora e exportadora de frutas tropicais, que havia decretado falência já havia uns dez anos.
A ocupação da fazenda JOBRASA representou uma mudança de atitude dos camponeses em relação aos proprietários de terras e autoridades do município de Jaguaruana que por muitos séculos reinaram absoluto em suas propriedades como verdadeiros “coronéis” e senhores de escravos.
Os camponeses, muitos deles vivendo na periferia da cidade, começarem a se organizar cerca de três meses antes a partir da intervenção do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Na noite em que foi realizada a ocupação saíram todos da periferia da cidade, no Bairro Alto, onde foi feita a concentração. Na caminhada passaram pelo Bairro Tabuleiro e a 1,5 Km depois atravessaram o rio Jaguaribe, no trecho denominado Rio Serafim, passando em seguida pela comunidade de Carnaubal, à sua margem direita. Após uma caminhada de mais 1,5 km chegaram aos portões da fazenda, que se encontrava trancado à corrente e cadeado. Houve um momento de indecisão, alguns camponeses abandonaram o grupo temendo a repressão policial e a reação dos proprietários de terras e gado da região que utilizavam a fazenda para pastagem
[1].
A chibanca
[2], ferramenta de trabalho que faz parte do dia-a-dia do homem do campo, empunhada por uma mão firme, desferiu o golpe que fez voar pelos ares corrente e cadeado juntamente com as partículas luminosas resultantes do atrito. As partículas de fogo que concorreram com a luz da lua e das estrelas acenderam as esperanças daqueles que estavam do lado de fora da fazenda. A cerca e a porteira, instituições delimitadoras da propriedade privada, representam a divisão do mundo entre os proprietários e não-proprietários. Além de ser uma barreira material a cerca e a porteira funcionam, no plano simbólico e das representações, como um entrave psicológico. Numa sociedade na qual a posse da terra teve um papel central na definição da dinâmica de classes e na estruturação do campo econômico, naturalizar a situação dos despossuídos foi uma condição essencial para o não questionamento das desigualdades sociais.
Os movimentos sociais do campo que lutam pelo direito ao acesso a terra representam para os camponeses a possibilidade de questionamento da estrutura fundiária do país, com propostas de reforma agrária que superam as políticas restritas de assentamento e colonização promovidas pelo Estado. A reforma agrária defendida pelos movimentos sociais não é contrária ao desenvolvimento da agricultura camponesa, pelo contrário, a reforça. As elites políticas e econômicas, dentre elas os grandes proprietários rurais ou latifundiários, defendem a tese de que a agricultura camponesa é inviável, representando atraso e prejuízo para a economia nacional e a solução seria a agricultura capitalista, porque é técnica e financeiramente viável. Com base neste discurso os grandes proprietários se beneficiam dos créditos públicos e incentivos fiscais enquanto o campesinato fica excluído das políticas públicas para o campo. A saída apontada pelo Estado, organismos internacionais e intelectuais representantes das elites econômicas seria a reforma agrária de mercado e a agricultura familiar empresarial
[3]. De acordo com um consultor do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, em pesquisa a respeito da situação da reforma agrária e sua relação com a economia globalizada, na qual analisa o nível de renda dos assentados em projetos de Reforma Agrária,
(...) a mesma situação em termos de renda não se registra em todas as regiões do país. O caso analisado no Nordeste revela a impossibilidade de estruturar um setor consolidado nas condições de clima e solos do semi-árido nordestino. Nenhum agricultor atingiu esse nível, e a grande maioria sobrevive em função do apoio constante de algumas ONG’s e entidades de apoio. Isto não desqualifica o esforço realizado pelos agricultores e suas organizações no sentido de estruturar sistemas de produção com espécies adaptadas à seca, caprinocultura, obras de irrigação, etc. Conseguem, assim, coexistir com a seca e sobreviver a suas conseqüências mais nefastas. Mas os altos custos e as dificuldades crônicas dos sistemas desse tipo não justificam uma política voltada para a expansão da agricultura familiar nessa região, como pode ser o caso da reforma agrária (GUANZIROLI, 1998).
A conclusão obvia deste estudo é de que em regiões como o Nordeste o agronegócio é a única alternativa viável, pois a pequena propriedade e os projetos de Assentamento de Reforma Agrária representariam entraves ao desenvolvimento da região, devido às condições de clima e solos. Essas contradições, no entanto, podem ser percebidas pelos observadores mais desatentos, pois os grandes projetos agroindustriais se espalham por todos os lugares. O Projeto Jaguaribe Apodi, que envolve os municípios de Limoeiro do Norte e Quixeré, e o Projeto Tabuleiros de Russas, envolvendo os municípios de Russas, Morada Nova e Limoeiro do Norte, representam apenas uma pequena demonstração da apropriação das terras férteis e dos recursos hídricos por grandes empresários.
O agronegócio, um nome novo para designar um velho conhecido, o latifúndio, é a saída encontrada pelo Estado para a reprodução da estrutura agrária do país, garantindo aos grandes proprietários, a inviolabilidade da grande propriedade, e ao mesmo tempo mão-de-obra barata, tornando possível a existência de milhares de trabalhadores que vendem sua força de trabalho em condições precárias.
A ocupação da fazenda JOBRASA representou um salto de qualidade para os camponeses do município de Jaguaruana. De acordo com o GETRAM – Grupo de Estudo e Trabalho para Melhoria e Revitalização do Assentamento Bela Vista,
Para a grande maioria dos que participaram da ocupação da fazenda essa foi uma experiência inesquecível, pois pela primeira vez na vida se sentiram sujeitos da história, responsáveis por seus destinos. A experiência mais próxima pela qual quase todos haviam enfrentado foram os saques ou tentativas de saques ao comércio local nos períodos de seca. A diferença estava no fato que no saque a “multidão” é movida pela fome, enquanto na ocupação de terras há um caráter político mais evidente, até porque foi o MST que organizou os trabalhadores durante meses para aquela ação.
Durante a ocupação da terra e o estabelecimento do acampamento os camponeses passaram por uma experiência de trabalho coletivo, coisa muito diferente da ajuda mútua que caracteriza a rotina de trabalho e organização da produção do campesinato brasileiro.
A organização e o exercício da política foi outra variável que diferenciou o Assentamento Bela Vista de outras comunidades e organizações sociais, pois existiu por muitos anos uma democracia direta a partir da qual os assentados discutiam seus problemas e decidiam os destinos da comunidade através da participação e respeito às decisões da maioria (GETRAM, 2008, p. 4).
A ocupação resultou na desapropriação da terra pelo governo federal e na constituição do P.A. Bela Vista, com 174 famílias assentadas. O Assentamento Bela Vista é constituído por duas agrovilas
[4]: a principal, com 154 famílias, localiza-se no início da Chapada do Apodi; a outra, com 20 famílias, estar situada no local onde funcionava o escritório central da empresa, por isso é conhecida como “sede”. Duas associações representam os assentados: a mais antiga, a Associação dos Assentados do Assentamento Bela Vista e a Associação Cooperativista Nova Vida, fundada há cinco anos. Desde o final de 2008, com a intenção de contribuir com a organização do assentamento, um grupo de assentados e assentadas e seus filhos vêm se reunindo para criar um grupo, denominado GETRAM – Grupo de Estudo e Trabalho para a Melhoria do Assentamento Bela Vista – que tem como objetivo “trabalhar para a melhoria e revitalização do Assentamento Bela Vista, com o intuito de refletir a respeito dos problemas e dificuldades vivenciadas pelos assentados, na tentativa de ampliar as condições da comunidade e o desenvolvimento da agricultura camponesa” (GETRAM, op. cit., p. 5).
Desde a ocupação, passando pelo processo de acampamento e assentamento já se passaram quase 13 (treze) anos. Durante este período os assentados passaram por diversas experiências, marcando profundamente a existência destes camponeses e a forma como vêem a si mesmos e o mundo. Pois,
Enfim, um assentamento que resulta de programa de reforma agrária não se restringe à dimensão econômica, pois ele se caracteriza por ser um espaço de vida, um território socialmente ocupado no dizer do grande geógrafo Milton Santos, onde as pessoas partilham suas vidas, crenças e valores. O assentamento é a expressão concreta de uma nova organização social, sendo que o espaço socialmente construído e conquistado deve refletir as condições objetivas e subjetivas para o desenvolvimento integral, ou seja, os assentados devem dar um salto de qualidade nos aspectos sócio-econômicos, políticos, educacionais, culturais, etc. (Idem, op. cit., p. 5).
É esta experiência, o viver em um assentamento de reforma agrária e o processo de ocupação, resistência e reprodução material da existência, a temática deste projeto de pesquisa. Pretende-se compreender o processo de construção do Assentamento Bela Vista, a luta pela terra, através das experiências individuais e coletivas vivenciadas pelos assentados.
A pesquisa justifica-se pela necessidade de se compreender de forma mais ampla a luta pela terra em Jaguaruana, tendo em vista que a ocupação da fazenda Jobrasa não foi um fato isolado na história das ocupações neste município. Além do Assentamento Bela Vista, há no seu entorno mais quatro assentamentos e e um acampamento: Assentamento Serra Dantas, Bernardo Marinho I, Campos Verdes e Boi Gordo. O acampamento Bom Jesus, localizado ao lado do Assentamento Bela Vista, já teve o decreto de desapropriação da terra assinado pelo governo federal.
Como se pode observar pela dimensão da questão, a temática necessita ser melhor compreendida e exige a realização de estudos mais amplos. Por ora, esta pesquisa pretende iniciar a reflexão a respeito. Esperamos poder aprofundar o tema em outro esforço de pesquisa
[5].
[1] Grandes proprietários do município passaram a utilizar as pastagens da fazenda, após a falência da Jobrasa, para criação de gado, sem a autorização de nenhum órgão do Estado. Por isso, eles consideravam-na produtiva e por esse motivo temeram e repudiaram a presença dos “sem-terra” na propriedade.
[2] Uma ferramenta de trabalho utilizada pelos camponeses para a destoca, o processo de arrancar o toco e as raízes das árvores depois que é feito a broca e a queimada. A chibanca é a combinação de dois outros instrumentos de trabalho: numa extremidade há uma espécie de machado e na outra uma pequena enxada.
[3] Estas questões serão desenvolvidas mais adiante. É importante aqui perceber as diversas estratégias postas em prática para limitar a legitimidade das reivindicações dos camponeses e incentivar políticas que visam à destruição do campesinato, pois as propostas de agricultura familiar têm um forte componente empresarial que solapa as relações próprias da agricultura camponesa. Para saber mais a respeito desta temática ver as pesquisas desenvolvidas pelo NERA (Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária), ligado ao Departamento de Geografia da FCT/UNESP, Campus de Presidente Prudente. Consultar o site
www.fct.unesp.br/nera, onde estão disponíveis diversos textos, artigos, boletins, relatórios sobre a questão da reforma agrária no país.
[4] As agrovilas são constituídas em um lote reservado para tal finalidade. Nelas são definidas diversas “regras sociais entre os moradores para garantir o clima social de amizade e fraternidade”. Uma agrovila “representa sobretudo a manutenção do sentido de coletividade que move os assentados desde os tempos dos acampamentos” (MORISSAWA, 2001, p. 227).
[5] O autor pretende dar continuidade ao estudo da problemática em sua pesquisa de doutorado, a partir de 2010.